segunda-feira, 13 de junho de 2011

FRONTEIRAR


Conferência no FRONTEIRAS: ARTEPSICODRAMAFILOSOFIA

                                                                               Devanir Merengué


                                        Ver a ciência com a ótica do artista,
                                               mas a arte, com a da vida...
                                                                              F. Nietzche
                                                            
No dicionário Houaiss fronteirar significa tornar fronteiro, contíguo um espaço do outro.

Fronteira diz respeito, nos ensina o mesmo dicionário, a parte extrema de uma área, região, etc, a parte limítrofe de um espaço em relação a outro. Significa ainda o marco, a raia, a linha divisória entre duas áreas. Lemos em seguida, um grande número de expressões que, em seus campos de saber, se utilizam do vocábulo fronteira. Temos, então, fronteira agrícola, fronteira artificial, fronteira esboçada, fronteira lingüística, fronteira silábica, fronteira termodinâmica , fronteira viva, fronteira morta, etc., cada qual tratando destas possibilidades contíguas e infinitas de pontos de contatos entre áreas, paises, línguas, atmosferas, realidades ou imaginações.

Outro vocábulo interessante é fronteiriço: o significado é aquele que vive ou se encontra na fronteira. No sentido figurado é que se acha no limite de alguma coisa. E ainda um significado importante: individuo cujas condições mentais ou emocionais estão próximas da linha divisória entre o que se considera normal e anormal.

Precisei desse breve aquecimento léxico para fazer alguma aproximação com a palavra e algumas das nuances de transito implicadas no processo. Um exercício psicodramático poderia nos transportar para uma fronteira entre dois paises: andar de um lado para o outro, colocar um pé de cada lado, procurar emoções e pensamentos possíveis, visar à existência de obstáculos naturais ou artificiais entre as duas áreas, algum policiamento presente, presença de geografias, vegetação ou construções... Enfim, uma infinidade de possibilidades imaginárias que poderia ainda ser mais problematizada se acrescentássemos uma terceira área como as divisas entre os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ou Uruguai, Argentina e Brasil. As singularidades de cada região ou país produzem uma outra realidade que se instala justamente na tensão ou na tranqüilidade dos espaços contíguos.

Podemos brincar com a história e nos autorizar a fazer estas fronteiras: aproximar-nos de quem nos não conhecemos, ver um filme que não escolheríamos, viajar para um lugar inusitado, assistir uma aula de culinária indígena ou de chinês...  Supostamente, faríamos contato com aquilo que poderíamos chamar de alteridade ou outridade. Mas podemos imaginar novas possibilidades com o mesmo, com o conhecido como reler um livro significativo de nossa infância ou ir no mesmo lugar em que fomos ontem e tentar descobrir algo diferente. De qualquer forma, só se faz estes movimentos quando nos sentimos um tanto ou muito acuados pela mesmice.

Um projeto como a Socionomia foi produzido nas fronteiras de um tempo e uma geografia. Ou dizendo de outro modo, o século XX, a Europa e os Estados Unidos, com as especificidades muito diretas, influências e questões inerentes ao projeto moreniano. No meu entender, havia a necessidade de se contrapor a um mundo carregado de certezas e tradições com novas possibilidades de experimentação. Desse modo, o modelo produzido por J.L. Moreno tem algo de binário, em um primeiro momento, que vem a ser o conflito espontaneidade criadora x conservas culturais. Claro que a complexização da proposta vem de nuances do que seria espontâneo e do que seria criativo ou ainda de uma classificação mais pormenorizada do que vem a ser conserva cultural. 

Como sabemos, o Psicodrama no Brasil teve uma grande repercussão nas últimas décadas do século XX em um mundo que pedia mudanças em todas as áreas. Uma juventude que desejava mais liberdade nos campos da sexualidade, na vida amorosa, no trabalho, nas relações com a família. Este enorme desejo de mudança ia do pessoal ao político e as ações frequentemente estavam entrelaçadas. Por que não ir atrás as grandes Utopias?, era a óbvia evidência da época. A imaginação precisava estar no poder e o poder necessitava ser repensado. A liberação das mulheres, dos negros, dos gays fazia do mundo ocidental um laboratório para novas experiências sempre opondo estas buscas a um conservadorismo bastante arraigado. No Brasil a ditadura militar proibia reuniões, fazendo com que os trabalhos nos e com os grupos possibilidades efetivas de sub/versão. E no caso não era uma metáfora.

Viena no começo do século XX como nos anos de chumbo no Brasil são exemplos de possibilidades muito interessantes para o Psicodrama: existe um ‘inimigo’ a ser vencido, uma ditadura, uma rigidez que necessita ser dissolvida, uma doença aprisionante.

Com o derretimento das ilusões com respeito às Utopias e, com ele, certa descrença nas chamadas grandes narrativas (como o marxismo e a psicanálise) o Psicodrama, talvez mais frágil em termos teóricos, sofreu, do mesmo modo, sérias conseqüências.

Especificamente enumero algumas destas questões que me parecem importantes para a retomada:

  1. As Fronteiras entre o Público e o Privado

Uma proposta interessantíssima do Psicodrama sempre foi a discussão focando a linha demarcatória entre estas instâncias. Aquilo que o individuo sofre na chamada intimidade muito possivelmente é sofrido, de algum modo, por tantos outros indivíduos dentro de uma mesma cultura e, por que não?, na “mesma” raça humana. O espaço grupal sempre funcionou como o lócus privilegiado para o encontro destas instâncias separadas. No experimento socio-psicodramatico a fronteira entre o publico e o privado precisa ser derrubada momentaneamente para que possamos reconhecer a humanidade que nos aproxima. A busca por aquilo que nos oprimia, a partir das constatações que todos nos sofremos com isso, é concretizado no palco psicodramático. Chamamos isso de protagonização.

O que mudou?

Cada vez menos os relacionamentos acontecem no campo da intimidade. Existe um desejo de exibir aquilo o que já chamamos de privado. Ou seja, a intimidade passou a ser mostrada de modo indiscriminado. Um novo conceito foi criado por um teórico francês chamado Serge Tisseron – a extimidade (extimité) para dar conta do fenômeno: esta privacidade constantemente exibida nas telas.

As novas redes sociais fazem com que nossa vida seja publicada, assim como os namoros, as rupturas, as festas, as baladas são frutos de reportagens pessoais cotidianamente anunciadas. Mas não só: os programas de TV praticamente levaram o consultório de psicoterapia para lá e querem saber tudo. Detalhes da vida familiar e sexual dos indivíduos são escarafunchados ao extremo. A grande novidade da primeira década do século XXI em termos midiaticos foi a ascensão dos reality shows, nos quais a vida é dramatizada como uma novela. Sites eróticos de todo o tipo exibem pessoas, casais e grupos se masturbando, transando solitariamente ou não, coisa que, não há muito tempo atrás (no ocidente e no século XX), seriam atos impensáveis para a uma coletividade inteira.

Além disso, o mundo ocidental naturalizou o uso indiscriminado de câmeras transformando todos em atores e espectadores de todos em nome da segurança, talvez a palavra mais repetida nos nossos dias.

E os celulares viraram sintomaticamente câmaras fotográficas que registram todos os momentos possíveis. Fazer um filme e colocar o filme no You Tube passou a ser uma pratica rotineira dos mais jovens. Não entro aqui na discussão se isso é bom ou ruim, certo ou errado, mas apenas e tão somente constato a entrada definitiva do mundo na idade da tela.

No que toda essa extimidade pode estar afetando o Psicodrama?


  1. Uma sociedade sob controle e do controle

Estamos muito distantes de uma sociedade que cumpria disciplinarmente tradições, que obrigava os indivíduos a obedecerem a padrões normatizadores de maneira tosca e acrítica. Em uma sociedade de controle as regras são muito mais invisíveis e tentaculares. Na vida contemporânea já não tão diretamente regulada pela família, mas sim pela grande mídia, pelos pensamentos que atravessam nosso tempo, por uma exterioridade sempre colorida. A família também está imersa nesse amplo mundo complexo e interconectado.

No ocidente, são raros os ditadores assumidos, a opressão especificada, a família tirânica. Tudo é muito mais vago e muito mais difícil de se apreender.

Os controles são, digamos, positivos: superar, ser o que se é, realizar desejos, ter projetos, cuidar da saúde, fazer ginástica, buscar equilíbrio,... Toda uma série de comportamentos que poderiam ser classificados como bons em um primeiro momento. Mas vejamos: o que se pede para ser? Que projetos de vida seriam estes? Que equilíbrio se deve buscar? Que desejos são estes que devem ser realizados? Como diferenciar o ser do aparentar? Qual o papel do consumo (de bens, de conhecimentos, de amores, de religiões, de informação, de saúde...) nos nossos dias?

O Psicodrama pode ignorar estes novos modelos e estas novas possibilidades?


  1. A teatralização das relações: fronteiras entre a ficção e a realidade

Fica evidente que o que se mostra na extimidade não é a intimidade propriamente dita, mas uma realidade modificada pela câmera. Com isso passamos todos a viver uma grande cena e não parece que isso, necessariamente, incomoda a maioria. A multiplicação midiatica traz uma sensação enorme de onipotência, ou seja, quando mais aparecemos mais somos.

A ficcionalização da realidade, no entanto, modifica a ficção e a realidade nos empurrando para o universo sedutor de virtualidade. Um enorme embaralhamento entre fantasia e realidade

O projeto socionômico passa por estas instâncias no sentido de buscar e fazer do imaginário seu campo de trabalho. Que outras respostas podemos dar a isso? Qual a saída criativa para tal situação? O imaginário pode estar para lá de colonizado, mas é nele que também buscamos construções espontâneas e criativas para nossos conflitos. E não penso aqui somente no imaginário como instância pessoal, mas que atravessa indivíduos e coletividades.

Qual é, pois, a colonização contemporânea do imaginário? Como buscar respostas espontâneas e criativas aí?


  1. A obrigação se sermos espontâneos

O conceito de espontaneidade criadora, como aparece em Moreno, revela-se hoje uma noção bastante genérica com as mudanças anunciadas nesse mundo novo. Moreno constava à sua volta relações enrijecidas pela tradição, pelo medo da mudança, por um cuidadoso desejo de manutenção da coisa sabida.  A espontaneidade criadora visava rupturas, como tento demonstrar antes.

Existe uma espontaneidade veiculada pelas mídias que estabelece um padrão de felicidade, de saúde, de vitalidade. Essa espontaneidade exige um frescor constante do ser humano, veiculado através de anúncios de qualquer produto. Ou em outras palavras, um conceito que originalmente tinha um caráter disruptivo, transformador, questionador do status quo se transformou, na mentalidade contemporânea, na norma. A espontaneidade – a sponte sua – por vontade própria tão do agrado dos psicodramatistas deve ser questionada: vontade própria de quem?


  1. A questão do sujeito

O chamado sujeito contemporâneo é alguém que escolhe e decide o que bem quiser, resumido, no JUST DO IT: você pode escolher o seu futuro, sua casa, sua família, seu destino. Tudo está mais ou menos à mão e trata-se apenas e tão somente de vontade própria: você quer ou não quer?

Nesta mentalidade as decisões são sempre individuais, mas necessariamente boas. Não se fala de decisões coletivas, nem mesmo familiares, grupais ou de casal. Tudo fica centrado no individuo que é entendido como sujeito de sua ação. Assim, as mentalidades são geridas pelas religiões, pelo marketing, pelos livros de autoajuda, pelas grandes mídias – a televisão e a internet, especialmente.

Sabemos que o sujeito moreniano é o sujeito da ação, mas não de qualquer ação. É o sujeito inspirado na tragédia grega que debate-se entre o condicionamento e a vontade própria, entre seguir o determinismo do inconsciente e a escolha. E, mais complexo ainda, este movimento não é exatamente apenas uma questão individual mais tem óbvias ressonâncias coletivas e seu interesse fica situado nesta tensão entre indivíduos e grupos, indivíduos e sociedades.

Se pensarmos o sujeito da ação como sujeitos que produzem diferenças que não satisfazem necessariamente a ordem vigente, mas criam possibilidades humanas criativas configurando novas tendências talvez possamos retomar o projeto socionômico um tanto quanto esquecido.

No meu entender, pois, existe uma forte contradição entre o sujeito esperado, o ser ideal da contemporaneidade e o sujeito da ação pressuposto por Moreno. O primeiro me parece mais o sujeitado que fica à deriva em um inconsciente midiatico, indiferenciado, pouquíssimo singularizado. Já o sujeito proposto por Moreno realiza suas ações na luta e no confronto, nas agruras do desconhecido, na experiência impactante do abismo.


Quando tento fronteirar Psicodrama com a Arte e com a Filosofia estou assumidamente declarando, além de resgatar algo da singularidade do projeto moreniano, minha profunda insatisfação com um projeto que não responde as questões da contemporaneidade. Ou, seja acredito que precisamos tentar trazer este projeto para o século XXI com sua complexidade evidente e crescente, mas marcando seu lugar. Ou ao contrario, o Psicodrama passará ser uma teoria de museu, interessante para o século XX, mas totalmente misturado com as novas mídias, com os novos registros e, portanto, não diferenciado de tudo o que está aí.

Mas o que fazer? Como agir frente a este estado de coisas?

Para começar me parece que um retorno às fontes é imprescindível. Reler Moreno à luz dos filósofos contemporâneos fazendo um peneiramento entre o que ficou datado e o que é material ativo e importante para as relações, para o trabalho, para as instituições, para os novos projetos.  Fazer uma aproximação com as artes e suas ousadias tentando apreender o que buscam, por que buscam. Ou seja, precisamos fazer fronteiras com o que se mostra pulsante, incomodado, vitalizado. Precisamos responder com urgência questões como:

- o mundo contemporâneo compreende o sentido da dramatização? Em um mundo onde ficção e realidade estão tão próximas qual é o sentido para o como se? Dramatizar hoje é mais difícil do que foi há 20 anos atrás? Por quê?

- o que estamos entendendo por espontaneidade? E por criatividade? Para que a espontaneidade criadora se o mundo é tão mutante, tão criativo, tão espontâneo?

- que sentido tem o conceito de conserva cultural em uma realidade que muda e muda? Ou seja, em um mundo cuja única certeza é a mudança. Precisamos de conservas culturais? Quais? Isto faria de nós conservadores ou revolucionários?

- não precisamos pensar as relações humanas como relações subjetivas e intersubjetivas? O Psicodrama tem suporte teórico para isso?

- o que buscamos nós, seres humanos? No que o Psicodrama, modestamente, poderia contribuir?


No meu entendimento: criar é, de algum modo, produzir novas formas de resistência. Entendo que esta resistência, na contemporaneidade, pode ser traduzida como a criação que traga a marca da diferença, das formas cuja originalidade de distanciem das possibilidades de controle.

Pode não parecer, mas, do meu ponto de vista, nunca fomos tão caretas, tão controlados. Que alguma criação traga ar fresco, que consigamos estabelecer a diferença da resistência. Quando provocamos a diferença imediatamente geramos a produção de novos incômodos, saliências, desarranjos.

A artista americana Miru Kim é fotografada nua deitada entres porcos à espera de abate em The Pig that Therefore I Am (O Porco que, Portanto, Eu Sou) de 2010 exemplo de criação como resistência.

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